Carlos Oxun Yómi de Camargo
Babalorixá do Ilê Axé Egbé N’Ji Bun Mi
Se há, nos cultos afro-brasileiros, bem como na África, uma entidade assustadora, difícil de compreender, é Omulu – Obaluaê – Xapanã – Sakpatá, de quem, muitos acreditam, não se deve nem falar o nome. Esta divindade é mal compreendida até por seus filhos. Para entendê-la, precisamos saber suas origens, o tipo de sociedade em que nasceu e as transformações por que passou em função da história dos homens. É o que nos mostra a antropóloga Claude Lépine, em seu trabalho "As metamorfoses de Sakpatá, deus da varíola", do qual aqui apresentamos um extrato.
Embora no Brasil tenhamos a idéia de que Omulu ou Obaluaê constituam uma mesma divindade, também denominada entre nós Sakpatá ou Xapanã, orixá-vodum cultuado como o deus da varíola, da peste, da doença, na verdade os deuses da varíola na África, especialmente entre os iorubás ou nagôs e os jejes, têm várias origens e só depois de vários séculos acabaram fundidos numa única divindade tal como a conhecemos no Brasil.
Os templos do deus da varíola encontram-se freqüentemente fora das cidades, em lugares isolados e seus mitos relatam constantes brigas com outros deuses. No Brasil seus assentamentos ficam também isolado dos demais. É considerado uma divindade “muito velha” – eu diria muito antiga.
Acredita-se que a origem de Sakpatá seria o país iorubá e seus adeptos são chamados até hoje Anagonu. Esta origem parece bem estabelecida: seu culto fora introduzido no Dahomé (atual Benin) no séc. XVIII, pelo rei Agajá, após uma terrível epidemia de varíola que havia dizimado seu exército.
Encontramos Sakpatá e seus equivalentes estabelecidos em toda a área cultural ajá–iorubá. Suas principais denominações são :
Xapanã (para os iorubás) = Obaluaê = Rei dos donos da Terra e Sakpatá (Dahomé) = Ainon = Dono da Terra, dois nomes diferentes da mesma divindade; que tem por altar um pequeno monte de terra, sobre o qual estão inseridos, de cabeça para baixo, duas ou três panelas de barro cheias de furinhos.
Omulu e Olu Odô - divindades regionais originárias do Oeste, associados à água; que em Ketu passaram a se confundir com Xapanã – Obaluaê onde podemos supor que tinham algumas funções em comum; possivelmente associadas ao culto dos primeiros antepassados que ocuparam o local.
Buruku - encontrada sobretudo no Oeste, mas conhecida também em Ilê–Ifé e em Oyó e até em território Nupê – suas atribuições não são bem definidas.
No Leste – Buruku é uma divindade da varíola e se confunde com Xapanã.
No Oeste – em Atakpamè – assume feições de deus supremo.
- em Dassa – é representada por um montículo de terra, como Sakpatá.
Por outro lado, Buruku é freqüentemente associado a Nanã, antiga divindade da terra, tratando-se às vezes da mesma divindade. No Brasil Buruku é nome de Nanã, chamada Nanã Buruku, ou Bulucã.
O roteiro das migrações dos antepassados dos povos Ajá–iorubá, (proto-iorubás dos séculos. V, VI e VII) constitui numa grande área cultural, onde podem ser observadas marcantes semelhanças ao nível das instituições sociais e políticas dos costumes, das práticas e crenças religiosas :
um deles, em forma de teia de aranha, é o dos iorubás, que teriam vindo do
Leste para Ilê–Ifé, se irradiando em todas as direções;
o segundo, o dos ajás, percorre um caminho Leste–Oeste, de Oyó até Tado,
onde se divide em duas linhas, uma para Oeste a outra para o Sul.
Vejamos agora os principais centros de culto de Sakpatá :
Entre os Igala da região de Idah, a divindade da varíola chama-se Iye, isto é,
provavelmente Aiyê ou seja o mesmo que Obaluaê.
Para os Akoko (Ogori, Estado de Kwara, Nigéria), a deusa da varíola é Iyá
Okeká, a Grande Mãe.
O deus da varíola, entre os Igbo, é Ojuko. Os Igbo cultuam também uma
divindade da Terra chamada Ale, Ala ou Ana (seria Ilé, Onilé dos iorubás, ou
Nanã).
Em Ilê-Ifé existe uma divindade chamada Obaluaê, associada à terra e à
agricultura, e também aos mortos e antepassados. Dizem que Obaluaê
estava estabelecido na região, em Oke Itaxe, bem antes da chegada de
Oduduwa. Há outra divindade, Buku, que traz a varíola.
Obaluaê teria vivido em Oyó no tempo do fundador da dinastia real, Oranyián. Dizem que era um guerreiro cruel, que acabou emigrando para o país dos Mahi, onde se fixou. Segundo outra tradição, Obaluaê era rei de Oyó e Oranyián roubou-lhe o trono. Dizem também que veio do país Nupe, onde teria sido um rei muito poderoso. Buruku também é conhecido nesta cidade, sendo responsável pela varíola.
Em Ibadan, Buruku e Xapanã são a mesma divindade. Buruku teria vindo do
Oeste, do Dahomé, terra dos jejes, ou do Togo. Teria vindo de Tapá ou Nupe, onde era um rei muito poderoso. Até hoje Obaluaê é chamado Elempê, isto é, rei de Nupe. Podemos imaginar que eram duas divindades distintas, que acabaram por se fundir.
Em Abeokutá, Buruku e Omulu são cultuados no mesmo templo, o que deve significar que eles mantêm algum parentesco ou que eles foram instalados pelo mesmo grupo. Buruku teria vindo de Savé e Omulu, do Dahomé. Omulu é uma divindade das águas, e nos sacrifícios rituais que lhe são oferecidos não se deve usar faca de ferro, costume preservados no Brasil no culto de Nanã e Omulu.
Dizem em Savé que Sakpatá (Xapanã) veio de Oyó. Buku, por sua vez, é dito ter vindo do Oeste. Existe também Olu Odo, divindade das águas, que apresenta todas as características de Omulu. Teria vindo de Aixê ou de Ajá Popó.
em Ketu, Xapanã, Omulu e Obaluaê são a mesma divindade. Segundo alguns, ela veio de Dassa Zoumé; segundo outros, veio de Aixé ou de Aja Popo, aldeias situadas a Oeste de Ketu. Como o candomblé brasileiro deve muito às tradições trazidas da cidade de Ketu, tanto que a nação dos primeiros terreiros leva a denominação desta cidade, é possível que a fusão de Xapanã, Omulu, Obaluaê e Sakpatá se deva a essas tradições.
Em Dassa Zoumé, Xapanã é aí o mesmo que Sakpatá, e dizem que ele veio de Tapá. Buku veio de Atakpame, a Oeste.
Em Alladá, o deus da varíola seria Houeci ou Houessio, entidade da família do píton (cobra) Dangbê, e associada aos Antepassados.
Em Abomey, capital dos jejes, como já sabemos, Sakpatá foi trazido por Agaja no século XVIII; e dizem que ele veio de Dassa Zoumé.
São muitas, portanto, as denominações do deus da varíola. O culto da Terra, junto com o dos Antepassados, teria sido a primeira forma de religião dos povos iorubás e ajás, desenvolvido por uma sociedade agrícola e por isso os deuses do panteão da Terra seriam os primeiros orixás-voduns a terem sido cultuados por iorubás e jejes que deram origem ao candomblé brasileiro. Mas outras divindades da Terra poderia até ser mais antiga do que o nosso Rei da Terra, Obaluaiê-Sakpatá-Omulu-Xapanã. Por exemplo, temos o caso de Aziza, uma importante crença desses povos antigos, que é uma entidade que povoa o mundo fantástico das florestas. Aziza é um ser habitualmente invisível, que pode assumir, se o desejar, a aparência de qualquer criatura, animal ou humana. Aziza é o rei da floresta e dos animais; Aziza pode ser associado também como um membro da categoria dos “tricksters”. Os tricksters são entidades trapalhonas e zombeteriras, das quais Exu e Legba têm muitas características; são criaturas indefinidas em todos os sentidos e essencialmente ambivalentes em suas relações com os homens, ora protegendo-os, ora voltando-se contra eles, sem motivo aparente. Possuem hábitos nômades, a capacidade em transformar-se em animais, objetos; matam velhos ou crianças, raptam donzelas, mudam de sexo...
Os voduns e os orixás foram, na origem, antepassados divinizados. No decorrer do tempo, os ancestrais divinizados das linhagens de chefes e, sobretudo, os da famílias reais, passavam a exercer novas funções em nível da cidade, e acabavam por se destacar do seu clã de origem para tornar-se objeto de um culto local e até étnico. Muitos antepassados, depois de divinizados, isto é, transformados em orixás ou voduns, eram levados de sua cidade para outras, quer em conseqüência das guerras intertribais de conquistas, quer pelas redes comerciais, de modo que cultos locais podiam se transformais em cultos regionais, às vezes ocupando todo o território cultural. Alguns orixás cultuados no Brasil já eram no tempo da chegada dos escravos orixás nacionais, como Xangô, Ogum e Obaluaê, enquanto outros eram orixás meramente locais, como Oxóssi e Logum Edé.
Sakpatá ou Xapanã, deve ter sido originariamente o antepassado fundador de algum grupo que se originou do povo Nupe ou Tapá, que vive ao norte do território iorubá. Com a dispersão desse povo muito antigo, passou por um processo de multiplicação, em função da segmentação do grupo primário. Todos os clãs que vieram do Leste para ocupar a região do Golfo do Benin traziam o culto do seus primeiros antepassados e Sakpatá foi um deles.
Até os dias de hoje, Sakpatá é concebido como uma figura paternal, que protege seus descendentes, mas também cuida que sejam respeitadas as regras que ele estabeleceu, castigando os infratores, retirando-lhes a prosperidade, a saúde, a fecundidade e até a vida. Estas funções são características dos antepassados, que zelam pelo grupo e pela manutenção de suas tradições, usos e costumes.
As doenças atribuídas à sua cólera foram provavelmente, desde cedo, doenças da pele doenças eruptivas, cujo aspecto lembra sementes brotando do chão. Sakpatá, Xapanã e os “reis da Terra”, em geral, estão associados à agricultura e à fertilidade do solo; dão aos homens os grãos, cereais e feijões. Eles também governam as condições atmosféricas que influenciam a agricultura: a chuva, as secas, a luz do sol, o calor... Sakpatá é, assim, também um deus da riqueza, saudado como “ Rei da Terra “, “Rei das Contas “ (símbolo de realeza), “ Dono de Todas as Riquezas”, poderoso, magnífico.
Em nossa época, Sakpatá, aparece com o nome genérico de todo um grupo de divindades locais organizadas numa família, e que constituem o panteão da Terra. Os diversos membros da família especializam-se em algumas funções: controlam as águas do rios, a água potável, a luz do sol, vigiam os campos...
Mas, ao mesmo tempo, Sakpatá foi cada vez mais associado, na mente das pessoas, à varíola. Este processo deve ter começado no século XVIII, provavelmente na segunda metade. No século XIX já parecia ter-se metamorfoseado numa horrível entidade que sai a caçar na estação da seca, acompanhada por um bando de espíritos maldosos, matando, deformando, aleijando. Ele apareceu aos olhos dos europeus como uma força inteiramente negativa, identificada pura e simplesmente com a “Varíola”. Com o nome de Xapanã, simboliza forças anti-sociais: ele representaria a revelação descontrolada e integral daquilo que deve permanecer oculto, afirmando-se como divindade do segredo.
A varíola, ao fazer estourar a pele negra que encobre o corpo humano, revela a intimidade da carne vermelha, que normalmente deve ficar escondida. Por esta razão, jogar água na terra sem pedir previamente autorização, “Agô”, é o tabu mais difundido de Xapanã. Com efeito, a água retira a camada superficial de húmus negro e revela a terra dissimulada por ele. Por analogia, jogar água na terra eqüivale a chamar a varíola.
Xapanã representaria o oposto de Fá ou Ifá e de Obatalá (equivalente iorubá de Lissá). Ifá representa o segredo do destino que o adivinho (bokonon ou babalaô) só em parte revela, de forma ritual e controlada. Xapanã opõe-se também a Obatalá ou Lissá, que simboliza a sociedade urbana e a monarquia, que também repousam no segredo. Nas sociedades tradicionais, o segredo deve envolver os rituais de cada culto, os negócios de cada associação, as deliberações do poder . É no segredo, no controle do conhecimento que se apoia o poder dos mais velhos, chefes e sacerdotes. Sakpatá representaria a quebra do segredo, por isso representa a destruição da cultura e da sociedade tradicionais; por isso seria uma divindade do exterior, o que vem de fora, o estrangeiro, que odeia reuniões e atividades culturais como dança e música, e vive só no mato.
Sakpatá é assim uma divindade particularmente ambivalente, benéfica e maléfica ao mesmo tempo, que traz a doença e a cura, a vida e a morte. Esta ambivalência, aliás, é própria de todos os voduns. Com o nome de Omulu e Obaluaê dos iorubás, carrega essas mesmas características.
Com o fim da varíola, no século XX, controlada pela vacina e pela saúde pública, Sakpatá-Omolu-Xapanã-Obaluaê, qualquer que seja o nome que se dê, foi perdendo a associação com a varíola, que hoje já ninguém mais tem por que temer, passando a ser para os iorubás descendentes do Brasil o orixá da doença genérica, da peste, e atualmente da AIDS, mas, acima de tudo, o deus da cura das moléstias, como também ocorre em Cuba, onde é chamado Babaluaiyê, ganhando entre nós o emblemático apelido de “ Médico dos Pobres”. Atotô!