sexta-feira, 18 de junho de 2010

Sociedade Gelede

Gelede, o poder ancestral feminino: restituir para restaurar a força

A Sociedade Gelede, integrada por homens e mulheres, cultua as Iya-agba, também chamadas Iyami, que simbolizam aspectos coletivos do poder ancestral feminino. Dirigida pelas erelu, mulheres detentoras dos segredos e poderes de Iyami, cuja boa vontade deve ser cultivada por ser essencial à continuidade da vida e da sociedade, o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de conduta. Seu festival é realizado anualmente, por ocasião da colheita de inhame, e dura sete dias.28Quando Iku devolve à terra o que lhe pertence, tornam-se possíveis os renascimentos. Assim considerada, a morte é instrumento indispensável de restituição.

King Sikiru Salami e Akin Agbedejobi registraram em vídeo o Festival de Gelede realizado em Ago-Egun na cidade de Abeokuta, estado de Ogun, Nigéria, no ano de 1990. A título de ilustração, o descrevo para tecer depois, algumas considerações sobre o poder ancestral feminino, elegendo, dentre as múltiplas possibilidades de abordagem desse tema, a que privilegia "a restituição como possibilidade de restauração da força" e que convida a refletir sobre o valor da restituição no quadro ético e moral dos iorubás.

Segue abaixo uma breve descrição do Festival de Gelede em Ago-Egun, 1990:

Os tambores falantes permanecem fixos na praça. A música fala por si. Em torno dos tambores dança Gelede incorporada em homens, uma vez que apenas homens incorporam essa força. Inicia-se o festival com a saída de Ogum, que dança carregando sobre a cabeça um recipiente de metal onde ardem altas chamas de fogo. Seguem-no quinze outros orixás. Sai finalmente Gelede, incorporada nos homens ou meninos que por recomendação de Ifá são ou estão sendo preparados como sacerdotes do culto. O auge do festival é marcado pela saída do superior hierárquico do grupo, representado nessa ocasião particular, pela figura de um gorila com aproximadamente dois metros e meio de altura, longos braços rigidamente estendidos na horizontal, ao lado do corpo. O líder sai apenas no terceiro e no sétimo (último) dias para participar dos festejos. Gelede, incorporada nesse sacerdote, dança continuamente e seus longos braços ameaçam tocar as pessoas que também dançam alegres a seu redor. Todas as pessoas realizam movimentos de modo a evitar qualquer contato físico com esses longos braços porque, segundo a crença, tornar-se-iam irremediavelmente surdas. A vestimenta dos demais homens e meninos que incorporam Gelede caracteriza-se por uma grande máscara representativa de algum animal e as vestes são constituídas por grandes tiras de pano colorido - os gele - panos usados diariamente como turbantes pelas mulheres. As máscaras usadas no Festival são os assentamentos de Gelede.

Durante todos os sete dias do Festival os participantes abandonam a praça e caminham pelas ruas, acompanhando Gelede que, incorporada em vários homens, durante o dia todo, recolhe-se ao anoitecer. Muitas cantigas são entoadas. Entre elas as chamadas cantigas de efe que referem-se, a comportamentos inadequados de homens, mulheres e crianças do grupo durante o ano transcorrido, em tom de brincadeira, tornando-os de conhecimento público.

Ao discorrer anteriormente sobre o axé, fiz referência ao fato de estar essa força sujeita a algumas leis uma das quais determina que, uma vez transferido a seres e objetos, neles mantém e renova o poder de realização. Como tudo o que vive necessita de axé e este é desgastável, é imperiosa a necessidade de reposição. Consideremos a questão da morte e dos renascimentos. A representação coletiva dos ancestrais é Iku, Morte, símbolo masculino relacionado com a terra. Os renascimentos dependem dos ancestrais e sua matéria de origem é a lama. Iku, conforme narra o mito29, restitui à terra o que lhe pertence, permitindo, assim, os renascimentos e, desse ponto de vista, Morte é um instrumento indispensável de restituição e um símbolo importante. Restituir é restituir o axé.

Poder genitor feminino

A unidade formada pela conjunção orun/aiye, dois níveis de existência inseparáveis, é simbolizada por igba-odu ou igbadu, cabaça cuja metade inferior representa o aiye e a superior, o orun. Em seu interior acham-se contidos elementos-símbolos. A metade superior da cabaça, representativa de orun, dimensão espiritual, princípio masculino, cobre a metade inferior, representativa de aiye, dimensão material, princípio feminino. Oxalá e Odudua, respectivamente princípio masculino e feminino, disputam entre si o título de orixá da criação, numa expressão da disputa entre o homem e a mulher pela supremacia.

Os irunmale da esquerda, liderados por Odudua, constituem o grupo de todas as entidades espirituais que detêm o poder genitor feminino. Novos seres têm origem no interior da matéria genitora feminina fecundada. A terra e a água - dos mares, rios, lagos e mananciais, água-sangue da terra, são os elementos veiculadores do axé genitor feminino (a água das chuvas é água-semen, portanto masculina). Odudua, representação coletiva suprema do poder genitor feminino, recebeu o elemento terra das mãos de Olorun, o Ser Supremo, e com ele criou aiye, o mundo.

Alguns orixás femininos, irunmale-divindades da esquerda, acham-se relacionados às Iya-agba, ancestrais femininos, do Egbe Eleye, sociedade das possuidoras de pássaros. Dentre eles, Nanã, como expressa seu oriki: Omo Atioro oke Ofa/Filha do poderoso pássaro Atioro, da cidade de Ofa; Oxum, Iyami-Akoko, mãe ancestral suprema e Iemanjá, Ye omo eja/Mãe dos peixes-filhos, esta última, relacionada ao poder genitor mais do que à gestação. Entre elas, a mais estreitamente associada à morte, à terra, à lama e aos lagos e fontes - águas contidas na terra, é Nanã. Na, raiz proto-sudânica ocidental, significa mãe. Sua qualidade maternal e sua relação com a lama e a terra úmida a associam à agricultura, à fertilidade e aos grãos. Seu aspecto de força genitora a faz pertencer ao branco, conforme revela um de seus oriki, mencionados por Elbein dos Santos ( 1986:82) - Nana funfun lele/ Nanã branca branca-neve. Simultaneamente, por estar associada a processo e interioridade, pertence ao preto. São seus filhos os mortos e os ancestrais e o segredo ou mistério que se opera em suas entranhas é expresso pela cor azul-escuro que a representa.

As Iya-agba (as anciãs, pessoas de idade, mães idosas e respeitáveis), também chamadas Agba, Iyami (minha mãe), Iyami Osoronga (minha mãe Oxorongá), Ajé, Eleye (Senhora dos pássaros), representam os poderes místicos da mulher em seu duplo aspecto - protetor e generoso / perigoso e destrutivo. Verger (1994) recorreu a algumas histórias de Ifá para demonstrar a ambivalência no que diz respeito às Iyagba. Quando Olodumare pergunta a Iyami como se servirá dos pássaros e do próprio poder, responde que matará aqueles que não a escutarem e concederá dinheiro e filhos aos que pedirem. Uma história do Odu Ogbe Osa conta que, quando as Iya-mi-eleye chegaram ao aiye, distribuíram-se sobre sete árvores, representando sete tipos de atividades distintas: sobre três dessas árvores trabalharam para o bem; sobre outras três, trabalharam para o mal; sobre a sétima elas trabalharam tanto para o bem quanto para o mal.30

Verger refere-se ao fato de serem as Iyami conhecidas principalmente como mulheres velhas, proprietárias de uma cabaça que guarda um pássaro, podendo transformar-se elas próprias em pássaros. Apreciadoras de sangue humano, realizam trabalhos maléficos e organizam reuniões noturnas na mata. No entanto, longe de serem excluídas da sociedade são, ao contrário, tratadas com grande respeito e consideração. O poderio de Iyami, principalmente atribuído às mulheres já velhas, pode, em certos casos, pertencer igualmente a jovens que o recebem por herança ou o adquirem das mais velhas. Diz Santos que o significado de Iya-mi foi deteriorado pelo trabalho de pesquisadores estrangeiros, transformando a Iya-mi, nossa mãe, sustentadora do mundo, em bruxa, no sentido pejorativo do termo. Despojada de sua função primordial de geradora da vida, ficou reduzida à condição de força destrutiva.

Gelede

Durante o festival as representações litúrgicas enfatizam a fecundidade e a feminilidade. O poder das Iyami é representado por efe, o pássaro-filho, símbolo do masculino e do elemento procriado. A presença de efe, que sai do mato na escuridão da noite como se saísse do interior de igba-nla, a grande cabaça, assegura a boa vontade das Iyami e seu poder de fecundação e gestação. Mencionamos anteriormente que entre as cantigas entoadas por ocasião do Festival de Gelede incluem-se as cantigas de efe, que fazem referências, em tom de brincadeira, a comportamentos inadequados de homens, mulheres e crianças do grupo durante o ano transcorrido entre um festival e outro, tornando-os de conhecimento público. Cumprem pois, entre outras, a função de controlador social, por veicularem normas e regras de relações, de ética, de disciplina moral do grupo, sob a autoridade do poder ancestral que está sendo cultuado. Transcrevemos, para ilustrar, um orin Gelede (cantiga de Gelede) recolhido por Salami (1993):

Quando algo cai e quebra

revela-se o segredo de seu interior.

Quando algo cai e quebra

revela-se o segredo de seu interior.

Quando um ovo cai no chão

se despedaça.

Quando algo cai e quebra

revela-se o segredo de seu interior.

Quando o ovo cai no chão

se despedaça, revelando o segredo de seu interior.

Aqui está Gelede, o segredo das sábias.


Restituir: restaurar a força

Vimos que as Iyami, também chamadas Eleye, Aje, Eniyan, Iya-agba, para poderem cumprir sua função necessitam ser fecundadas, umedecidas, restituídas. A terra, associada ao que é seco e quente, precisa ser umedecida continuamente, recuperar o "sangue branco" para poder propiciar novos alimentos.

Diz Elbein dos Santos (1986:81): Para engendrar, Nanã precisa ser constantemente ressarcida. Recebe em seu seio os mortos que tornarão possíveis os renascimentos. Esse significado aparece manifestamente em um de seus oriki: Ijuku-Agbe-Gba/ Inabitado país da morte, vivemos (e nele) iremos ser recebidos. A restituição é expressa também pelo fato de Nanã carregar na mão direita um ibiri, que significa meu descendente o encontrou e o trouxe de volta para mim.

A terra, igba-nla, a grande cabaça, recebe os corpos mortos que lhe restituem a capacidade genitora e tornam possíveis novos nascimentos. Assim, todo renascimento está relacionado com os ancestrais. A restituição e o renascimento estabelecem e preservam as relações entre orun e aiye. Por isso os ancestrais garantem a continuidade da vida no aiye.

Os orixás, associados a elementos cósmicos ou à natureza, significam matérias simbólicas de origem enquanto os ancestrais, significam princípios de existência genérica a nível social. Uns e outro são genitores. Na feliz expressão de Elbein dos Santos (1986:220), são matérias-massas de cuja interação nascem ou se desprendem descendentes-porções. Para preservar a dinâmica e o equilíbrio entre os componentes do sistema é preciso restituir, redistribuir o axé. O nascer e o renascer podem ser entendidos como um processo de desprendimento de uma porção da matéria-massa de origem, o que determina perda de axé dessa massa genitora. A restituição exige transformação: de existência individualizada a genérica, passando pela morte e, na outra via, de existência genérica a individualizada, no nascimento e renascimento de descendentes-porções, cada qual parte integrante de um único todo.

Toda restituição demanda destruição de matéria individualizada que, uma vez reabsorvida, nutre a massa genitora restaurando seu axé. Talvez esteja nessa necessidade imperiosa de ser constantemente ressarcida e umedecida para poder procriar com abundância a razão da já mencionada ambivalência do poder feminino, tão freqüentemente expressa em mitos e ritos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário